segunda-feira, 19 de março de 2012

Algo de valioso para partilhar





 "Uma mensagem de recuperação da adicção, simples e honesta, soa verdadeira." Texto Básico, p. 58

"Estás numa reunião. As partilhas já se arrastam há algum tempo. Um ou dois membros já descreveram experiências espirituais de uma forma especialmente significativa. Um outro já nos fez rir a todos com histórias divertidas. É então que o coordenador aponta para ti ... ...ai, ai! Começas a falar envergonhado, gaguejas algumas palavras em tom de desculpa, agradeces a todos por te terem ouvido, e ficas sentado o resto da reunião num silêncio embaraçado. Esta história é-te familiar? Bom, não estás sozinho. Todos nós passamos por alturas em que sentimos que o que tínhamos para partilhar não era suficientemente espiritual, não era suficientemente divertido, não era suficientemente coisa alguma. Mas partilhar não é um desporto de competição. O objectivo das nossas reuniões é a identificação e as experiências, o que é algo que todos nós temos em abundância. Quando partilhamos do coração a nossa verdadeira experiência, os outros adictos sentem que podem confiar em nós porque sabem que somos iguais a eles. Quando partilhamos simplesmente o que tem sido eficaz para nós, podemos ficar seguros de que a nossa mensagem irá ser útil para outros. A nossa partilha não tem que ser bonita ou divertida para tocar na verdade. Qualquer adicto que trabalhe honestamente o programa tem algo de imenso valor para partilhar, algo que mais ninguém pode dar: a sua própria experiência."


Encontrei essa mensagem em um grupo do Facebook chamada "ADICTOS".  Serve para adicção? Evidente...mas para mais o quê isso serve?

"Todos nós passamos por alturas em que sentimos que o que tínhamos para partilhar não era suficientemente espiritual, não era suficientemente divertido, não era suficientemente coisa alguma."...Tenho uma amiga que elogia muito as minhas palestras, mas diz que jamais falaria ao público, seja no trabalho ou em sua comunidade religiosa, porque acha que "não tem nada a dizer".  Tenho um aluno que nunca faz perguntas durante a aula, mas, ao contrário de parecer desinteressado, aborda-me vorazmente nos intervalos e na saída da classe.  Perguntei a ele uma vez porque não perguntava na frente dos outros e confessou-me ter "vergonha de falar besteira".
E nas famílias? Quantas vezes o filho se cala pelo temor de falar o que sente na frente dos pais? E a filha, que por tudo precisa seguir um modelo de comportamento pré-estabelecido, uma vez que já é "uma mocinha"? Em especial, após ter ouvido "cala a boca" ou "engole o choro" na sua infância, surge o temor de dividir o que pensa e o que sente com medo do julgamento do outro.  Crescem essas crianças, na maioria das vezes, ansiando aprovação e desconectadas de si mesmas.  Serão adultos esperando que alguém as salve, ou que as compreenda.  Procurarão muitas vezes a anestesia no sexo, droga, comida, jogo, relacionamentos destrutivos e codependentes, enfim...esvaziar-se-ão.  E isso porque não tiveram a oportunidade de aprender a amar e respeitar a si mesmos. Porque não expulsaram suas doenças pela boca.  Engoliram o choro, a raiva, a dor, a alegria e o prazer. Terminaram engolidos.
Sugeri à minha amiga que prepare uma palestra sobre medo de falar em público e escolha uma platéia disposta a ouví-la. Não há especialista maior do que quem sente a dor.  E ao meu jovem aluno, estudioso e assustado, convido a ajudar-me, montando seminários com cada uma das questões que me traz...e falando para a turma sobre o que aprendeu.
Como Chico Buarque em sua canção "A Voz do Dono e o Dono da Voz", desejo que nossas vozes se espalhem, se soltem, abandonem nossas gargantas, que se misturem e se enriqueçam, transformando a todos e a cada um de nós.

"A voz foi infiel, trocando de traquéia
E o dono foi perdendo a voz"







 

terça-feira, 6 de março de 2012

Sigilo Profissional

Essa crônica é fantástica e não tinha como não publicá-la aqui. Que não desanime demais, contudo, aos incautos candidatos(as) encantados por essa gente tão estranha efascinante: nós, o povo Psiq.





"Escritor é fofoqueiro. Fofoca até o que acontece em sua imaginação. Se a vida não ajuda, ele trata de ajudar a vida inventando casos. É um trabalho em equipe.

Uma das minhas euforias é contar o dia para minha namorada. Volto de uma palestra, de uma aula, e vou falando sem nenhum empurrão. Narro que toquei no braço da poltrona e vi um chiclete colado no forro e fiquei sondando qual foi o palestrante porco que me antecedeu, lembro que fui elogiar um brinco da mediadora e era uma cicatriz, falo mal de uns e de outros, reproduzo o desempenho dos estudantes que mais crescem na atividade, cristalizo frases do Vicente (“Só sonho nos finais de semana, quando tenho direito a dormir até 8h30”) e coleciono dados para impressioná-la, tipo que a empresa Marco Polo vendeu 700 ônibus para Copa ou que Robinho é o jogador que fez mais propagandas no país. Confesso o que comi no almoço, o que jantei, quem encontrei, atualizo as histórias de meus amigos prediletos (todo amigo é uma fotonovela). Reproduzo frases do twitter, explico os textos que escrevi, sou uma draga.

É evidente que busco o contraponto e pergunto no meio da catarse noturna: “Como foi seu dia?”

Instante de tirar os sapatos, relaxar e intercambiar experiências. É a pausa para não me envaidecer com as próprias lembranças e desafiar os olhos a piscar devagar.

Mas ela me responde sempre com “bom”.

E o atendimento?, insisto.

“Deu tudo certo.” E o papo termina sem mais nem menos. Não termina, expira.

Namorar uma psiquiatra é o equivalente a namorar um agente secreto. Não há passado, mas prontuários. Ela não me abre coisa alguma, avisa que é tudo privado e segredo de paciente. Uma confidência de padre. Que não insista, que sua clientela confia nela. Tem uma bula de argumentos: se cochichar um hábito, sou bem capaz de reconhecer seu portador na rua.

Já ousei trilhar as perguntas de vários caminhos e sou interceptado com lacônicas generalizações. Não me esclarece se é homem ou mulher, sua saída é usar “uma pessoa”. Alta ou baixa? Nunca. Magra ou gorda? Nunca.

Fujo de seu telefone para não causar mal-estar. Quando tem uma urgência, saio de perto e cantarolo a fim de abafar o som. Eu me reprimo para não me deprimir.

Cogito em criar uma associação dos namorados e das namoradas de psiquiatras. Para discutir tudo o que não sabem dos seus parceiros e como admitir a inexistência diurna.

O máximo de intimidade é quando ela diferencia o atendimento entre pesado e leve. Pouco alcanço o que está passando, do que enfrentou em horas e horas de divã, se tem conseguido absorver traumas e resistências. Quem diz que não está metida numa boca braba? Não irei desconfiar. Não há um vazamento para descobrir a calha quebrada. Ela não fala, não pode falar. Não comenta uma indiscrição, guarda para si, uma pira espartana. Partilha convicções de uma seita, participa de uma mensagem cifrada, abraçou uma vocação, uma missão altamente solitária. Algo que minha curiosidade não aceitará. Não faz nenhuma diferença se prometo segredo — ela me achará abusado e invasivo. Não está no horizonte correr riscos profissionais pela minha carência. É assim e que trate de me acostumar.

Se eu fosse um colega, talvez me pedisse conselhos, talvez me ligasse para confirmar a dosagem da medicação, talvez dedicasse noites a detalhar fatos e cruzar informações. Apaziguada, desligaria o abajur, encostaria o rosto no peito e me agradeceria sinceramente pela ajuda e paciência. Eu me sentiria importante, lavaríamos os jalecos na mesma máquina de lavar. Ela não arderia de medo das minhas palavras e atitudes. Em nossas gargantas, haveria um idêntico juramento de formatura.

Mas eu não tenho anel verde de médico, meu sonho é a aliança que simplifica e democratiza as confidências, sofro horrores porque desconheço o dia dela. Não diferencio sua segunda da terça da quarta da quinta da sexta. É tudo um dia bom.

Ou arrumo um psiquiatra para desabafar ou curso Psiquiatria enquanto é tempo."


Crônica publicada no site Vida Breve



domingo, 4 de março de 2012

Mulheres (e Homens) de verdade



Quem se lembra da campanha da Dove?
 Alguns anos atrás, a marca resolveu levantar uma nova "bandeira", e lançou a "Campanha pela Real Beleza", incentivando mulheres do mundo todo a aceitar a sua própria aparência, preservarem sua auto estima e viverem bem com suas imagens.
  A campanha não exaltava modelos esculturais, com cabelos lisos e brilhantes, com a pele lisa e macia, ao contrário, dava abertura para as diferentes  nuances da beleza.
 A nova inciativa da Louis Vuitton seguiu um caminho semelhante, e imediatamente gerou uma enorme  repercussão na rede social de notícias, Reditt.  Em pouquíssimas horas apareceram inúmeros  comentários a respeito do assunto. A imagem divulgada pela grife mostrou um toque da realidade e revelou que, por trás da marca, existem mulheres reais com rostos reais. 




Tão discutido, em especial nas últimas décadas, o assunto imagem corporal toma forma no pensamento de alguns estudiosos, que podemos contemplar:

Para Schilder (1994), a imagem corporal é a figura de nosso próprio corpo que formamos em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se nos apresenta.

Segundo Thompson (1996), o conceito de imagem corporal envolve três componentes:

Perceptivo, que se relaciona com a precisão da percepção da própria aparência física, envolvendo uma estimativa do tamanho corporal e do peso;
Subjetivo, que envolve aspectos como satisfação com a aparência, o nível de preocupação e ansiedade a ela associada;
Comportamental, que focaliza as situações evitadas pelo indivíduo por experimentar desconforto associado à aparência corporal (deixar de ir à praia por estar se sentindo "gorda" é clássico).


Para Stice (2002), existem evidências que dão suporte de que a mídia promove distúrbios da imagem corporal e alimentar. Análises têm estabelecido que modelos, atrizes e outros ícones femininos vêm se tornando mais magras ao longo das décadas. Indivíduos com transtornos alimentares sentem-se pressionados em demasia pela mídia para serem magros e reportam terem aprendido técnicas não-saudáveis de controle de peso (indução de vômitos, exercícios físicos rigorosos, dietas drásticas) através desse veículo.

Embora uma insatisfação ou distorção da imagem corporal possa estar presente em outros quadros psiquiátricos como transtorno dismórfico corporal, delírios somáticos, transexualismo, depressão, esquizofrenia e obesidade, é nos transtornos alimentares que seu papel sintomatológico e prognóstico é mais relevante.

Enquanto sociedade então, precisamos parar e pensar: o que queremos? o que realmente é belo para nós?  É frequente chegar aos consultórios de Psiquiatria pessoas que se tornaram abusadoras de anfetaminas, laxantes e outras substâncias químicas, lícitas ou não, em uma frenética tentativa de modelar seus corpos à moda da mídia, violentando seu organismo e forçando sua natureza a um limite impossível de ser alcançado. E o ciclo da insatisfação nunca termina.



 A triste realidade dos corpos que se degradam enquanto as mentes se mantém nos seus objetivos irreais desenhados em fotoshop.  Uma obsessão dramática que pode levar à morte.  Vejam, entretanto, de que maneira um mestre na restauração e harmonização do corpo, o Cirurgião Plástico Dr. Ivo Pitanguy nos brinda com um pensamento muito peculiar sobre a percepção de uma real beleza: 
"A beleza tem de transcender o físico. Para mim, a americana Wallis Simpson, que viveu aquele célebre caso de amor com o duque de Windsor, levando a que ele abdicasse do trono da Inglaterra, era uma bela mulher. Apesar de não ter os traços e o corpo bonitos, ela impressionava pela sua presença marcante."

Finalmente, é também do mesmo mestre a seguinte consideração, e que nela possamos todos refletir: 
"A busca da cirurgia plástica emana de uma finalidade transcendente. É a tentativa de harmonização do corpo com o espírito, da emoção com o racional, visando estabelecer um equilíbrio que permita ao indivíduo sentir-se em harmonia com sua própria imagem e com o universo que o cerca".




 


sábado, 3 de março de 2012

Os cães do Pastor



Era um dia quente e nesses dias as ovelhas ficavam mais agitadas.  O pastor, como sempre, atendia a todas.  Procurava vigiá-las, oferecia água, abrigo, acalanto...sua voz era ouvida e reconhecida por todas que nele sempre encontravam tudo o que precisavam para ter uma existência tranquila.
Mas entre as ovelhas sempre há uma um pouco mais rebelde.  Curiosa, às vezes agitada, às vezes eufórica e achando-se especialista em todos os assuntos.  Ora dona da verdade, ora dissimulada e manipuladora, tentando mostrar-se detentora de uma sabedoria que não possuía.  Outras vezes, essa ovelha parecia deprimida; isolava-se do rebanho, tinha seu coração angustiado e seu pensamento assoberbado por idéias diferentes, uma sensação de estranheza acompanhada por uma voz que dizia em sua cabeça: "eu não sou daqui...."



A floresta ao redor da fazenda era um convite para a ovelha curiosa; cada árvore frondosa, uns arbustos coloridos, diferentes...mágicos! Esticava o focinho, abria as narinas e procurava sentir o cheiro que vinha do desconhecido.  A cada dia parecia gostar menos da vida que levava e sentia-se mais e mais seduzida pela escuridão da floresta.  Não faltavam avisos e conselhos, mas a mente jovem e impetuosa da ovelha parecia fechada.  Seu impulso pedia,  seu desejo clamava, exigia, ordenava...e ela cedeu.




"Quanto pasto, quanto verde, que delícia!!!", exclamava a ovelha. "Como as outras são tolas, coitadas...umas bobas!".  Sentia-se, afinal, livre, flutuando enebriada com a profusão de cores, sons e odores que a floresta apresentava.
O cuidadoso pastor vem calmamente reunindo seu rebanho, quando é avisado por um empregado:
  - "Senhor, corre que vi tua ovelha adentrar a floresta!  Vem, larga tudo e vamos buscá-la!"
  - "Sei bem que a pequena se foi, meu caro.  Conheço cada uma pelo seu nome, e basta chamá-las para perceber de imediato que uma falta."
  - "Então que fazes tu parado aí, meu Senhor, parecendo despreocupado? Não sabes o que pode acontecer? Uma ovelha longe de seu rebanho é certamente comida de lobos!  Podes imaginar os perigos que ela enfrentará?"
   - "Sei bem o que as misérias que a esperam na solidão da floresta e, apesar de muito amá-la, não deixarei as outras para ir buscá-la. Contudo, certo estou que a terei comigo muito em breve."
   - "Como?"
   - "Dentro do local mais distante e escuro da floresta, onde tudo parecer totalmente perdido e a chance de retomar é cada vez menor, estão soltos a meu serviço dois competentes cachorros."




  - "Cachorros? Que cachorros?"
  - "Trabalham para mim e são exímios rastreadores das ovelhas que se afastam da minha proteção.  Como meus cães são ferozes, e  nossa ovelha muito rebelde e nem sempre se rende com facilidade, às vezes ela volta magoada, maltratada, com vários ferimentos abertos e muitas cicatrizes.  Algumas chegam até mim semimortas, outras nem mesmo desejam viver.  Não importa como ou quando se aproximarão de novo de mim, a realidade é que elas sempre retornarão...ora veja, ali adiante...Que bom, essa não demorou tanto!"
A nossa ovelha curiosa voltava desfalecida, suja, emagrecida e sangrando, arrastada pelos dentes de dois cães ansiosos por servirem seu senhor.
    - "Que animais magníficos, meu caro Pastor! Devoram, amassam, trituram e às vezes deixam muitas cicatrizes, mas inexoravelmente  trazem o desgarrado à tua presença. É espantoso! Diga, ó caríssimo, qual o nome dessas duas feras tão brutas e ao mesmo tempo tão necessária às tuas ovelhas?
   - "Seus nomes? Esses cães atendem ao meu chamado e são conhecidos por todo o meu rebanho como "DOR" e "SOFRIMENTO".